O meu amigo Ricardo não irá levar a mal se partilhar o que
me disse naquele dia em que nos encontramos casualmente na baixa de Setúbal, à
hora de almoço, um mês antes da pandemia. Não me atreveria a fazê-lo não fosse
ele um amigo de longa data:
- Pedro, há quanto tempo....! - continuou - Já sei que ainda
estás na "Bela Vista" . Tenho ouvido falar... - Sorriu.
- Sim, é verdade. Por lá continuo ainda. - respondi-lhe
entusiasmado. - Um dia destes tens de me fazer uma visita. Gostava que
conhecesses o sítio onde trabalho.
- Está prometido! Onde é: na escola de cima ou na escola de
baixo? Estás na secundária, certo?
- Ricardo, - retorqui - desde 2007 que já não existe
"escola de cima nem escola de baixo" (vulgarmente conhecidas por
preparatória e secundária). Sabes, o parque escolar foi melhorado e existe
apenas uma escola que agregou os alunos de ambas. É lá onde estou. - respondi-lhe
em tom de dejá vú, pois era uma conversa repetida vezes sem conta.
Com expressão mais ou menos envergonhada, confessou que não
passava por aquele bairro desde miúdo.
Eu disse que compreendia e acabamos por almoçar num tasco
barato ali perto.
Contei-lhe que, na realidade, era um Agrupamento de Escolas
de Intervenção Prioritária e que de tudo fazíamos para aumentar o sucesso
daqueles miúdos. Falei de projetos inovadores desde o pré-escolar ao ensino
secundário, dos recursos adicionais para alicerçar o trabalho docente numa
vertente mais social e, pelo meio, escaparam-me as dificuldades que ele nem
julgava existir ali tão perto e que muitas vezes se sobrepunham ao exercício
docente. Ouvia-me sem pestanejar e entusiasmei-me. Contei-lhe, então, o segredo
do sucesso só porque é meu amigo. As pessoas: a sua dedicação; o sentido de
missão; a entrega; o calor humano. O espaço para a inovação e para a partilha.
A comunicação e a colaboração sem medida. O acreditar que amanhã é melhor. Que
somos uma família. E que representamos uma referência maior.
Falei dos sucessos e dos insucessos. Dos apoios e dos
inúmeros desafios. Do olhar atento dos professores e dos olhos de águia dos
técnicos. Do menino agredido ao melhor aluno do mundo. Do aluno que não toma o
pequeno-almoço ao aluno que o apoia em surdina. Da menina que é levada a
desistir e do esforço hercúleo para que não o faça. Do aluno retirado à família
ao NOSSO aluno que ganhou o 1.o lugar nas Olimpíadas de Matemática deixando os
meninos do colégio privado indispostos. Da ansiedade do aluno que viu a mãe ser
agredida pelo padrasto ou o irmão a ser detido pelos agentes da esquadra do
bairro. Contei-lhe que o segredo eram as pessoas e a sua entrega. Muitas vezes,
referências únicas na vida dos alunos e de como estávamos já tão habituados a
resolver os problemas diários da nossa população sempre com a estratégia mais
indicada e com os apoios disponíveis adequados. Falei da forma como atuamos
precocemente para evitar males maiores numa espécie de "máquina de resolver
problemas" .
Falei da minha escola - a Escola da Bela Vista - erguida
imponente no meio dos blocos de betão amarelo por onde as pessoas raramente
passam e onde a prática pedagógica se reinventa diariamente.
Março de 2020 - É declarada a situação de calamidade no
âmbito da pandemia da doença COVID-19. Procede-se ao encerramento de várias
instalações e estabelecem-se medidas excecionais e temporárias atendendo à
situação epidemiológica do novo Coronavírus.
Os agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas da rede pública de ensino e os estabelecimentos particulares, cooperativos e do setor social e solidário com financiamento público adotam as medidas necessárias para a prestação de apoios alimentares a alunos beneficiários do escalão A da ação social escolar e, sempre que necessário, as medidas de apoio aos alunos das unidades especializadas que foram integradas nos centros de apoio à aprendizagem e cuja permanência na escola seja considerada indispensável. (...)" Decreto-Lei n.o 10-A/2020
Das recentes aprendizagens ao planeamento do futuro incerto
O que fazer naquele momento? Como poderíamos exercer a nossa
função docente? Como dar resposta a alunos em regime de teletrabalho sem o
recurso a quaisquer meios informáticos? O que fazer com os alunos mais novos
que tinham iniciado o processo de leitura e escrita há alguns meses atrás? Como
é que os alunos de escalão A e B poderiam almoçar na escola? Como acompanhar
aqueles alunos prioritários? Como chegar a todos? Como não deixar ninguém para
trás? Como continuar o processo de ensino aprendizagem...? Como...?
No dia 13 de março, a nossa "máquina de resolver
problemas" foi reprogramada em poucas horas, como formigas laboriosas em
carreiros alinhados. Ninguém saiu da escola sem levar consigo os e-mails ,
telefones, contactos atualizados, pessoas de referência de todos os alunos.
A ansiedade crescia desmedida, ao constatarmos que mais de
700 alunos não tinham computador ou equipamentos semelhantes, por outro lado
alguns contactos não tinham sido atualizados recentemente. A ansiedade
continuava a acentuar-se. As perguntas não paravam. E havia alunos que não
podiam estar muito tempo afastados da escola sem o acompanhamento e olhar dos
técnicos. A ansiedade era ainda maior. A angústia da responsabilidade crescia
sem darmos conta.
Mesmo sem sabermos bem o que fazer recolhemos tudo o que
podíamos para manter a ligação direta ou indireta aos alunos. Os departamentos
curriculares através dos seus representantes disciplinares criaram uma
interessante bateria de atividades para ajudar a desenvolver aprendizagens
essenciais em casa. Mesmo sem computador, tínhamos a esperança que alguém
imprimisse as propostas de trabalho e as fizesse chegar aos alunos, depois de
as descarregar da página web da escola num qualquer computador de um familiar
ou vizinho.
Em dois dias apenas criámos - orgulhosos - um plano de
Ensino a Distância (que nos parecia perfeito) com o apoio do roteiro que o
Ministério da Educação nos tinha feito chegar por aqueles dias. Um plano de
ensino em modo de guião com as funções detalhadas de cada um e o modus operandi
para ser desenvolvido na sua plenitude, ainda que com alunos sem acesso a meios
informáticos.
Na escola, nos corredores compridos outrora inundados de agitação,
havia agora um silêncio ensurdecedor que nos inquietava dia após dia. A tal
"máquina" habituada a resolver os problemas dos outros era, agora, o
centro do problema. Faltavam as pessoas e as relações entre si.
Com o decorrer das semanas fomos "afinando" a
articulação entre professores e técnicos e percebemos que o papel do Diretor de
Turma assumiria uma importância acrescida que, aliás, gostaria de destacar: a
articulação com todos os elementos do Conselho de Turma foi essencial e não
houve tempo a perder.
Na tentativa de chegar a todos, lançamo-nos na descoberta de
paradeiros e moradas em contactos diretos com o Gabinete de Apoio ao Aluno e à
Família (GAAF) em articulação com as assistentes sociais que acompanhavam as
famílias e com o inestimável apoio dos parceiros locais, como o Programa
Escolhas, por exemplo. Os docentes de Educação Especial e os técnicos do Centro
de Recursos para a Inclusão tiveram igualmente um papel fundamental na
planificação das várias tarefas com a orientação da Equipa Multidisciplinar
para a Educação Inclusiva e de outro gabinete análogo (informal) que já
tínhamos criado para uma atuação mais rápida e de primeira linha, ao qual
chamamos GAPI - Gabinete de Análise de Primeira Intervenção.
Seguiram-se dias não menos fáceis. Não menos exigentes. O
levantamento exaustivo diário e crescente do número de alunos carenciados para
almoçar; apuramento do número de alunos sem equipamentos informáticos ou
semelhantes e sem acesso a internet,... E ainda os relatos e lamentos de
professores que não se compadeciam com tal forma de ensinar: ora porque os
alunos não tinham acesso a estes meios, ou porque não dominavam as diferentes
tecnologias, ou até porque não os conseguiam visualizar - a todos - atrás do
pequeno ecrã do computador pessoal.
Entretanto, a formação disponibilizada pela tutela
trouxe-nos algum alento mas, na verdade, nada substituía a presença na escola
com os alunos.
Estes, por sua vez, apareciam em pequenos grupos no grande
portão da escola, escondidos atrás de uma coisa de pano que lhes cobria a
tristeza, mas que não disfarçava o olhar saudoso lançado para dentro da escola.
Vinham com sacos de plástico escondidos para levantar as marmitas do almoço e
outros para receber os trabalhos, que lá íamos imprimindo semanalmente, enviados
pelos respetivos Diretores de Turma.
Das recentes aprendizagens ao planeamento do futuro incerto,
há lições que devem ficar registadas pela experiência que tivemos no contexto
pandémico. Não há, de facto, memória de maior desafio ao nosso sistema educativo,
a par das desigualdades sociais que condicionam, em grande medida, o sucesso
dos alunos e que foram neste contexto, substancialmente agravadas com a crise
económica. Sabemos bem que, na educação, nem todos partem do mesmo ponto, mas
todos deverão ter condições para fazer o seu percurso escolar, seja lá qual for
a opção escolhida.
Se ainda dúvidas houvesse em que os professores não podem
ser substituídos por máquinas, resta-nos uma das poucas certezas: o ato
educativo é, antes de mais, um ato de relação. Relação pedagógica que se
constrói presencialmente, porque somos seres de relação com o outro. Porque
aprendemos em conjunto com as virtudes e defeitos dos outros. Com os apoios e
com as dificuldades. Com as relações que estabelecemos e que não podem ser
substituídas pela aridez de um teclado ou de um micro ecrã que esconde emoções
e condiciona o afeto pedagógico.
A comunicação e a articulação entre os diferentes atores
educativos foi uma mais valia neste panorama e que, de certa forma, ajudam a
explicar muito do sucesso deste plano através da partilha e das redes de apoio
que se constituíram. Por fim, a dedicação extrema à causa educativa por parte
dos professores e a rápida adequação ao contexto social e educativo garantiu
que os alunos, de forma geral, continuassem a desenvolver as aprendizagens com
sucesso, com o apoio possível das famílias e de outros agentes educativos,
suportados em projetos locais e nacionais.
Havemos de voltar nesta ou noutra nova (a)normalidade onde
retomaremos o lugar e as funções que sempre tivemos para dignificar e fazer
educação. Numa nova "máquina", reprogramada, mas com as mesmas peças
fundamentais que a fazem funcionar na sua plenitude e que em educação não
poderão ser substituídas por computadores ou outra coisa qualquer que nos
separa do olhar dos alunos, das emoções, da relação pedagógica e do calor
humano - prioritário, sem dúvida. Havemos assim de voltar em breve com pessoas
e afetos, ainda mais disponíveis, mais capazes e com experiências diferentes
que podem ser capitalizadas para favorecer o direito à educação de todos.
Há poucos dias o meu amigo Ricardo (aquele que não sabia que
as duas antigas escolas já não existiam e tinham dado origem a uma única
escola) enviou-me um sms: "Amigo Pedro, era bom que toda a gente soubesse
o trabalho que vocês fazem aí nessa escola. Bom ano letivo e que voltemos todos
já em setembro."
Creio que com este testemunho possa concretizar o desejo do
meu amigo Ricardo.
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